Por uma vida mais distraída
Recebi esse texto de uma amiga que fiz num antigo local de trabalho. Agora que ela está tão longe, em outro continente, vamos, estranhamente, ficando um pouquinho mais próximas. Isso é muito bom. Estar perto, muitas vezes, não significa estar acessível ao coração.
Por não estarmos distraídos
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos. • Clarice Lispector
*fotocomposição de Dan Mountford.
Um comentário:
meu comentário não tem nada a ver com o texto, mas com sua introdução: é engraçado como a distância aproxima (gostei desse oxímoro!). experiência própria: morando em outro país sinto saudades de pessoas que eu não via sempre no brasil e que, mesmo no brasil, moravam longe de mim. acho que só a possibilidade de vê-las a qualquer momento, quando eu também estava no brasil (menos distante do que agora), fazia com que eu não desse conta da saudade, ou simplesmente não me importasse com isso. não sei explicar, hehe.
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